sábado, 17 de dezembro de 2016

Incompletude









"A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado"
(Manoel de Barros)




Sou uma pedra incomum, insisto em não ocupar posições cômodas e confortáveis. Não tolero a entropia zero e  a calmaria da procrastinação. Lanço-me sob o desconhecido sem olhar a altura do despenhadeiro e fujo do conhecimento acovardado dos especialistas.Aventuro-me no geral e aprecio o singular, devoro-me em noites sem fim  em busca de conhecimento reflexivo.Embriago-me de ler mariposas e lampenjos de vento. Depois de muita análise, constatei que não sou normal, habito a periferia da curva de gauss, sou aquele ponto improvável e insurportável. Prefiro o coaxar dos sapos as vozes espinhosas e vazias. Sou verdadeiramente inconstante e abrupto. Sangro para agitar o conformismo sedutor e desafiar os seres pensantes e irracionais. Tenho uma pedra angular em minha alma, que não se encaixa, que causa desconforto e faz-me impulsionar para frente. Minha incompletude é o que me faz seguir, se para uns é martírio, para mim, é a salvação.




"Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os resto"
(Manoel de Barros)




O poeta do absurdo ( Manoel de Barros)











Manoel de Barros foi um daqueles gênios que quando partiu deixou o mundo mais doloroso.Sua poesia era anestesia para inúmeras enfermidades, chagas até então incuráveis. Diria que era um antídoto para o espirito. Suas palavras absurdas, inteligíveis e irracionais nos forçava a olhar  a vida sob uma nova perspectiva. Era um disturbardor, um agitador de referências. Poderia dizer que sua poesia anárquica rasgava qualquer métrica, qualquer resquício de racionalidade formal. Obrigado, pois  me achei em seus cacos interiores.





Retrato do artista quando coisa


A maior riqueza

do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

domingo, 27 de novembro de 2016

Eutanásia Social ( Mistanásia).










                 Os debates éticos sobre eutanásia são ainda muito presentes em vários países do mundo. Com exceção de poucos países como, por exemplo, Holanda e Bélgica, o ato de um médico ou profissional de saúde atuar diretamente em ação que provoque o óbito sem sofrimento de um indivíduo em situações específicas consiste em atitude ilícita. Os argumentos são diversos sobre o tema, onde se mesclam muitas vezes aspectos religiosos, culturais e morais de cada país. Contudo, pouco se debate sobre a mistanásia.
                 A mistanásia ou eutanásia social significa a morte miserável fora e antes do seu tempo. Em outras palavras, consiste na morte precoce, extratemporal, como consequência da pobreza, violência, droga, chacinas, falta de infraestrutura e condições mínimas de se ter uma vida digna.
               Nas unidades de saúde brasileiras é muito comum a omissão de socorro estrutural que atinge milhões de doentes durante sua vida inteira e não apenas nas fases avançadas e terminais de suas enfermidades. São as vidas a deriva nos inúmeros corredores do país ou nas intermináveis filas de procedimentos vitais, como diagnóstico e tratamento precoce do câncer. Outra forma comum e não contabilizada é a morte precoce por falta de acesso mínimo aos cuidados de saúde em diversos níveis.
        A mistanásia é a face perversa da sociedade, não tem culpados, mas possui uma responsabilidade coletiva. Esta tem como raiz central o desrespeito a vida humana, o que a torna moralmente aceitável. Quanto menos fora do centro da sociedade é o compromisso ético com a vida, mais ela é marcante. Ela é colocada para debaixo do tapete, pois é dolorosa e evidencia nossa crueldade enquanto seres conscientes. 
            Muitos filósofos concordam que o respeito é um valor nuclear humano, este valor significa simplesmente o reconhecer da existência e necessidades do outro, mas a vítima de mistanásia é anônima, seu “eu” não é sequer uma estatística para o Estado.
             Não se pode esperar um estado de direito onde não existe respeito. Se há mistanásia e ela é moralmente aceitável, é preciso redesenhar o escopo da sociedade, o planejamento inicial falhou, o simples texto constitucional não foi suficiente e as leis podem ter servido a propósitos não prioritários ou particulares. Sem respeito, justiça e solidariedade não se pode avançar na construção de uma sociedade verdadeiramente ética.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Oração Incomum.



 



        Hoje fiz um oração incomum, em um mundo de muitas certezas pedi com toda sinceridade:


Deus, protege-me de um dia ter uma mente repleta de certezas e dogmas intocáveis, prefiro reconhecer a dádiva da dúvida a promover guerras por certeza apócrifas e passageiras. 
Que os homens entendam um dia que tu não dissestes: aja luz! mas, aja luz? e a luz hesitou em se emergir, criando até a sombra para atestar a própria existência....
Que eu siga em frente sempre querendo mais aprender do que ensinar, mais escutar do que falar, mais acolher do que lutar.
Que meu coração se mantenha como o de um criança sempre, que meu ego não crie barreiras ao amor e que eu aceite as contingências da vida com sabedoria e humildade.
Que eu olhe sempre com empatia o meu próximo e tenha forças para doar mais do que querer receber.
por último, que eu aceite com naturalidade nossa finitude e imperfeição.
Que assim seja.

sábado, 1 de outubro de 2016

A poesia curativa!













Quando era adolescente o primeiro contato que tive com poesia foi na disciplina de literatura, lá me ensinavam as características dos poemas através das escolas literárias, as métricas, as regas e todo o fardo rigor do tecnicismo. Houve época que o método era preferível ao conteúdo. É uma pena que o modelo cartesiano também tenha deixado os  rastros de sua engenharia na literatura. Claro que eu detestava a disciplina e passei a odiar literatura, leitura e poesia. Aquilo não me atraia, não era palpável, era frio e sem alma. Minha relação com a poesia foi de guerra por vários anos.
Um dia eu assisti a um filme chamado sociedade dos poetas mortos que mostrava a criatividade de um professor ao fazer com que seus alunos passassem a encantar-se  com a poesia e a desenvolverem suas habilidades poéticas. A partir desse filme, comecei a ver que todos nascem poetas, a vida adulta é que vai nos roubando a capacidade de ver a vida mais bela. A criança, por exemplo, é a maior de todos as poesias. Ela é um poema encarnado. O sorriso de uma criança deflagra uma emoção incomparável, por outro lado, o sofrimento de uma criança nos fere profundamente. A poesia não precisa ser escrita, ela pode estar em forma de um abraço, um afeto, um gesto significativo, e tudo mais que nos toca e nos faz lembrar nossa humanidade.
Existe também o poeta, aquele que capta as emoções coletivas e consegue traduzir estas em símbolos, através de escritos e/ou da arte. Foi só depois que conheci Rubem  Alves, Cecilia Meireles, Pablo Neruda, Clarice Lispector, Vinicius de Morais, etc  que eu entendi o que era poesia. A métrica não é o fim em si para estes poetas/profetas.
Sim, todo poeta é também um profeta de seu tempo. Tem gente que acha que a maior habilidade do profeta é a previsão do futuro, mas em verdade o maior talento profético é a capacidade de fazer a leitura das dores de seu tempo, é no presente que vive o coração do verdadeiro profeta/poeta. Ele converge as angústias, os medos, as aflições de seus próximos e muitas vezes as convertem em esperança, e isso também é um exercício de amor, a mais bela das poesias.
 Lemos poesia para vermos nossas próprias dores sob uma nova perspectiva. Ver o registro, um escrito de algo que apenas sentimos traz para o consciente aquela emoção latente no peito, abre também a chaga mal cicatrizada, colocada para debaixo do tapete, sendo, portanto, uma nova oportunidade de uma cura real, um suave convite a cartase.
            Existe um sintoma que não é descrito na medicina, mas é um forte preditivo da iminência da morte: é a incapacidade de ver beleza no mundo. Ela antecede, muitas vezes em anos, a morte física e torna a vida um cemitério. Que sua vida seja uma eterna poesia, antes que os dias de escuridão se tornem reais



segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Quando a humanização da Saúde não funciona?


                   





                 Uma das coisas mais curiosas que achei quando entrei na faculdade de medicina foi o ouvir termo "humanização da saúde". Naquela época, acreditava que o respeito e reverência a vida eram suficientes para nossa relação médico-paciente. 
                    Quando eu visitei a Disney, eu tive uma experiência de encantamento, tudo era marcante e vivo. Todos sorriam, lembro das cores, das crianças correndo, dos quiosques e dos brinquedos, tudo era  alegria lúdica naquele local. Não fazia sentido falar em humanização na Disney, eles partiam do pressuposto que nós já éramos humanos, não precisaríamos, portanto, "nos humanizar". O foco era na experiência, tinha que ser perfeito, os detalhes eram importantes.Sempre tinha um jovem feliz para lhe ajudar pronunciando "welcome"!
                Contudo parece-me que ser profissional de saúde adoece. Em uma sociedade em que a felicidade e o sucesso são medidos em cifras, cuidar dos outros é a maior das loucuras. Tenho impressão que a arte de cuidar mata a alma se você não tiver cuidado consigo.
                   O que mais toca meu coração é ver como os profissionais estão esgotados, lidando com um cenário de tragédia diária. Sem nenhum cuidado, são cordeiros sem pastores. Almas perdidas e vagantes, com olhares adultos dispersos, é impossível não perceber a angústia, são espíritos desejantes em serem removidos daquele ambiente hostil.
                   Incapazes de expressar as próprias emoções, iniciam o processo de morte gradual, em que a primeira etapa é o sentimento de frustração e ineficácia do trabalho. Em seguida, aqueles corpos vivos que clamam cuidado, também conhecidos como pacientes, passam a virar objetos como vasos ou colunas para estes, pois o coração já está comprometido. Sim, jesus estava certo, "os olhos veem e a boca fala do que o coração está farto".
                Desmotivação, perda de sentido do trabalho, culpa e depressão são os sintomas finais do burnout em que são submetidos. Não pode existir humanização sem cuidado, sem toque, sem emoção, sem sonhos! Na depressão, não sobra espaço para humanização. Quantos lindos sonhos se vão diariamente nos corredores dos hospitais. Assim, não há encantamento, o doente (o profissional) passa a ser  culpabilizado pela experiência negativa de valor dos pacientes (doentes), retro-alimentando o ciclo de crueldades.
                  Quando vejo um colega feliz por começar a trabalhar em um hospital público, em silêncio, peço a Deus que conserve seu coração como o de uma criança pelo máximo de tempo possível, pois só assim ele poderá sempre ter vida. Como diria Cris Griscon, "a criança é por natureza um ser do encantamento, um ser que experimenta a leveza, e que não retém a dor".
              Um dia espero que possamos promover e reproduzir a todos a experiência  que milhares de turistas têm na flórida naqueles parques, mas antes precisamos cuidar e valorizar a vida de quem decidiu dedicar sua passagem ao afago do próximo.



domingo, 31 de julho de 2016

Diálogo com um Butânes










Ao perguntar a um amigo do Butão sobre "o segredo" deles serem o povo mais feliz do mundo, ele me respondeu de forma direta e desconcertante:

-Breitner, é simples, pensamos na morte diariamente. 

Um pouco desconcertado, eu não escondi minha surpresa:

- Hein? como assim? 

De forma irreverente ele me falou:

- Ao pensar na morte, não na violência, entendemos que toda a vida e os desdobramentos do ego são uma ilusão, somente o respeito a vida faz sentido, assim, não sofremos. 


Naquele momento de confusão psicológica, já cambaleante, tentei hesitar em prosseguir com questionamentos, mas não pude deixar de dize-lo que nós ocidentais também convivemos e pesamos diariamente na morte, nós que inventamos o "carpe diem", toda medicina de ponta para aliviar as dores da morte e salvar quando necessário. Não podia ir para casa sem registar que fomos nós afinal que criamos a geração "woodstock", que aproveita a vida acima de tudo!!!

De forma bem simples ele me falou:

Os ocidentais ainda não entenderam o que é a morte, vocês têm medo dela, isso é a base de todo sofrimento e dor,  de toda ansiedade que vocês vivenciam diariamente. Muitas vezes a interpretação do carpe diem dos ocidentais representa, na verdade, uma reação de medo da morte, de opressão das emoções. 


                Foi quando entendi que pensar na morte não significa "aproveitar" a vida, pois esse pensamento e as ações decorrentes desse modo de pensar só geram mais ansiedade. Pensar na morte significa, na verdade, respeitar a vida e as emoções humanas com todas as suas aparentes incongruências. É compreender suas limitações e até onde você pode agir, é amar ao próximo e compreender  que você não é mais especial que seu vizinho no mundo e,  ao mesmo tempo, é a salvação do mundo.







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domingo, 19 de junho de 2016

Silenciar é isolar-se?












Silêncio
(Otacilio Lima)


O silêncio da alma é inquietante
Por que a alma não teria nada a dizer?
Será que está pronta para ouvir?
Palavra por palavra, frase por frase
Gesto por gesto, quero significar minha vida
Significa-la para eu mesmo, para ter significado na vida de outros
Sem significado,a vida é mero existência
Silencio, silencio, shiiii
Sofrer precisa de silêncio
Amar precisa do silêncio
Viver precisa do silêncio
A esperança precisa do silêncio
A alma precisa do silêncio"



                   Quando jovem, temia o silêncio. Era uma tortura ficar sozinho sem ninguém por perto. Para mim, como para muitos ocidentais, silêncio cotidiano era sinônimo de morte, término, pranto e depressão.Vivemos em uma sociedade de ruídos, dependemos deles para sermos produtivos, quanto mais ruídos e gente gritando ao nosso redor mas sensação de utilidade social temos, estamos produzindo eletricamente e sem cessar. 
                   Demorei muito para entender que  aprendemos o falso sentido do silêncio, fomos, por isso, educados inconscientemente a evita-lo. Um minuto de silêncio virou uma homenagem a morte. Até mesmo no cristianismo evitamos cada vez mais a prática do silêncio nos cultos e missas, jogamos, assim,  para debaixo do tapete o ensinamento do salmista: "Sê quieto, e sabei que eu sou Deus...
               Certa vez me perguntei porque o gênios da humanidade tinham tanto apreço pelo isolamento, filósofos, cientistas, poetas, profetas e até Jesus, muitos com longos períodos de silêncio em suas jornadas. Foi quando entendi que no silêncio nunca estamos sós, e é nessa morada que todos podemos beber da fonte que nunca acaba, lá damos ouvidos para dama da intuição, que está sempre a postos aguardando o convite. O silêncio não é apenas a ausência de ruído externo e a calmaria dos ruídos internos, é o esvaziar-se plenamente, sendo o caminho para a verdade e a vida.
                       Ao contrário do que imaginava, cada vez que me silencio, menos me isolo, e mais compreendo minha responsabilidade para com a humanidade.

CONFISSÕES
(Mario Quintana)

Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém

Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta

Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios

Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!




"Mas, por que peço silêncio
não creiam que vou morrer-me:

me passa todo o contrário:

acontece que vou viver-me"

( Pablo Neruda)

domingo, 22 de maio de 2016

Minha Experiência Socialista








                     Nos primórdios da minha adolescência, em torno de 14 anos, entrei em contato pela primeira vez com o doutrinamento socialista na escola, naquela época era natural e sinônimo de elegância intelectual possuir um declínio de esquerda e defender a luta de classes como motor da história com fervor. Rapidamente fui cooptado para o doutrinamento através das juventudes socialistas partidárias.

         Em um primeiro momento, tudo aquilo fazia muito sentido para mim, como vim de família humilde, passei a acreditar que minha situação era proveniente da opressão da burguesia, meu pai alcoólatra e minha mãe morrendo com câncer nos corredores do SUS seriam vitimas de uma entidade chamada capitalismo, e eu também. Aliás, uma das coisas que mais aprendi na juventude socialista é se vitimar de forma apaixonada diante da realidade da vida e que sua existência só poderia ser modificada se conseguíssemos implantar a revolução do proletariado e dominar toda propriedade privada, sem isso todos nós continuaríamos seguindo uma vida miserável e vil.
           Os encontros eram quase religiosos, tínhamos que falar jargões socialistas, conhecer, mesmo que superficialmente, o manifesto comunista era essencial para ser aceito e reconhecido no grupo. Apesar de ter tudo que precisava, como um lar, comida, educação, lazer gratuito e acesso médico, mesmo que com deficiências, aquilo já não me parecia mais suficiente, precisávamos mostras as pessoas que o único caminho da felicidade plena era acabar com a burguesia e implantar a ditadura do proletariado para se chegar ao comunismo.
       Cheguei a protestar de forma convicta em frente as lojas Mcdonalds e a Coca-Cola por serem símbolos do imperialismo americano, desconsiderando que lá dentro existiam centenas e milhares de jovens em todo mundo em sua primeira experiência de emprego, tentando construir suas próprias vidas. Mas não, nós estávamos ali para convence-los que eram explorados e precisavam se unir a nós. Não entendia porque estes não escutavam nossos apelos emocionais, sofria por achar que eles estavam impregnados pela "alienação" capitalista, era preciso intensificar as forças e partir, em alguns momentos, para violência, como a depredação desses estabelecimentos capitalistas exploradores para chamar atenção.
    Por sorte, entrei na igreja protestante e lá, pela primeira vez, aprendi o que era solidariedade, colaboração e transformação da realidade pelo serviço. Contudo, meus doutrinadores socialistas, seja na escola, seja na faculdade, exortavam-me que ajudar ao próximo era o principal instrumento do capitalismo para dominação e alienação dos trabalhadores. 
   Lembro-me como vivi um doloroso conflito ao ver uma família na rua e fui tocado em oferecer alimentos e abrigo a eles, as vozes de alguns dos meus professores ecoavam em minha mente, "você deve coopta-los para a luta comunista, não caia na cilada capitalista do assistencialismo". Bom, felizmente deixei meu coração agir, não a razão, e ajudei aquela família, mesmo que de forma paliativa, senti que, naquele momento, era o melhor que eu podia fazer ao invés de falar a eles sobre nossa revolução social.
 Na faculdade, fui presidente de centro acadêmico, meus heróis latinos eram todos ex-guerrilheiros, lia tudo sobre a vida deles e me espelhava em suas ações de altruísmo e camaradagem a causa comunista, mesmo que isso implicasse em matar o próximo sem hesitação em nome de um "bem maior". Éramos totalmente blindados das doutrinas liberais, esse termo, aliás, era o mais próximo daquilo que aprendi ser o demônio na igreja, era preciso combater a qualquer custo toda forma de ideologia capitalista, mesmo sem conhecimento. Nossa convicção era tão forte que sequer tínhamos interesse de estudar tais ideias, o que poderia inclusive ser visto como uma traição a Max sem precedentes. Lembro de ter desprezado o idioma inglês na adolescência em decorrência do ódio que possuía aos americanos imperialistas, fiz o vestibular em espanhol inclusive. Demorei para descobrir que o ódio que tinha dos americanos era na verdade uma canalização da revolta que possuía por não poder usufruir de suas conquistas.
  Abro um parêntese aqui para falar da burguesia. Com o tempo, mudamos o significado da palavra, burguesia não se referia mais aqueles que detinham os meios de produção, na verdade, taxávamos de burgueses todos aqueles que não concordassem conosco. Usávamos de forma indiscriminada o termo e de forma ofensiva. Assim, criamos novas categorias, advogado burguês, médico burguês, juiz burguês, patrão e trabalhador burgueses, etc. Não importava, se não concordassem conosco e não fossem favoráveis à nossa revolução, alcunhávamos como tais, mesmo dentro de uma mesma classe. Ainda na faculdade cogitei partir para cuba para fortalecer meus conhecimentos socialistas. Ficava cada vez mais claro para mim o poder do doutrinamento politico e, na igreja descobria aos poucos também a vertente do doutrinamento religioso. Não posso negar que tive inúmeras experiências negativas com essa última também.
Hoje reconheço o perigo dessas duas formas de doutrinamento que, quando unidas, causam efeitos devastadores, principalmente na fase de vulnerabilidade que é a adolescência, o que explica a relativa facilidade de cooptação de jovens por grupos religiosos/políticos extremistas no mundo, como o destrutivo Estado Islâmico.
Quando terminei a faculdade de medicina, por ironia do destino, fui convocado para servir as forças armadas. Um delírio para um comunista convicto! Não bastasse odiar os militares pelo período da ditadura, ainda estava sendo cooptado pelo Estado burguês para servi-lo na defesa da propriedade privada. Nasci em 1984, já no fim do regime militar, tudo o que sabia sobre o período era através dos professores e histórias contadas.
Durante meu tempo de caserna, descobri que  exageraram propositalmente para mim, existiam seres humanos incríveis ali, amigos leais e pessoas dispostas a dedicar toda as suas vidas a serviço do país independente de governos. Tive oportunidade de conversar com pessoas que estavam do “outro lado” e eles me falaram que não tinham um projeto de poder, estavam protegendo o país de uma outra forma de ditadura ainda mais sanguinolenta, a que eu defendia até então. Vivi uma crise sem precedentes, pois de fato antes de alcançarmos o comunismo instalaríamos uma ditadura do proletariado, que na prática, foi a mais cruel de todas na terra, a experiência da União Soviética, leste europeu, Cuba, China e Coreia do Norte foram destrutivas a humanidade, um genocídio sem precedentes, justiçamento e assassinatos em praças publicas eram comuns, fusão do partido com governo, nacionalização e destruição da propriedade privada. Descobri ainda que, no Brasil, ocorreram 286 mortes pelo regime durante mais de 20 anos, dados da própria comissão da verdade, mas me fizeram acreditar que tinham sido milhões de mortos. Na verdade, a grande maioria das pessoas que pegaram em armas não lutaram por uma democracia, essa definitivamente não fazia parte de seus planos, objetivo era um só, implantar a ditadura do proletariado. Essas verdades foram muito duras para eu aceitar.
Fui obrigado a digerir essa realidade e ver o outro lado do período militar. Enfatizo que desprezo toda forma de tirana e acredito que a democracia, apesar de todas as suas falhas, ainda é o melhor melhor modelo político existente, contudo nunca fez parta da luta do proletariado a democracia, isso precisa ficar muito claro. A transição do Brasil para a democracia não se deu com derramamento de sangue como eu achava, mas simplesmente porque já não existia a ameaça socialista, a união soviética sucumbiu a sua própria farsa, a experiência havia fracassado, assim os militares não mais resistiram em colaborar com a transição para o novo Brasil pós-88. Com essa experiência, aprendi a não julgar atos do passado com olhar do futuro, desconsiderando seu contexto histórico, seja de qual lado for.
 Assim que me formei, abri uma empresa e comecei a estudar sobre estratégias de mercado, vi o quão era mais adequado a vida as ideias liberais. Rapidamente percebi que o livre mercado acolhia melhor a humanidade dos seres humanos e a complexidade de suas emoções, o comunismo, ao contrário, forçava a todos a um estagio transitório, que jamais terminaria, de miséria e opressão. Com pouco estudo percebi também que nenhum outro sistema tirou tantas pessoas da pobreza ou aumentou a expectativa de vida global, além de ter promovido avanços antes impensáveis na medicina. Descobri ainda que ser médico e empresário em um país com um Estado burocrático, ineficiente e corrupto é um ato de coragem e amor ao país. São anos para ter algum retorno, devido a carga tributária e trabalhista elevadíssimas. Conheci inúmeros empresários e descobri, ao contrário do que me falavam, que em sua grande maioria eram pessoas com belíssimas historias de superação e determinação, enquanto, do outro lado, a maioria das pessoas só sabiam reclamar de tudo e não eram muito adeptas ao trabalho que tanto defendiam.  Assim, despretensiosamente, “amanheci” como um burguês traidor.

 Hoje acredito que o contraponto do capitalismo é a solidariedade e a colaboração, não o comunismo. Lutar por uma sociedade mais solidária e menos destrutiva consiste em um imperativo ético, racional e humano, não doutrinário. Consegui me libertar das amarras socialistas, mas não é fácil, muita gente não teve a mesma sorte e ficou pelo caminho lamentando o declínio global de suas ideologias. Atualmente, os poucos que insistem em defender cegamente a velha luta de classes tornaram-se de presença insuportável e favorecem, com sua atitudes extremistas, cada vez mais a libertação da juventude dessas ideias históricas.
O momento é outro, precisamos superar o passado e entender que a nova dinâmica da vida nos exige cada vez mais criatividade, não há mais espaço para o bipolarismo. A emergência das novas necessidades humanas em um mundo cada vez mais globalizado obriga-nos a sermos mais independentes  e inteligentes. O livre mercado não é o sistema mais justo do mundo, mas ainda é o melhor que temos, espero que surja algo ainda melhor no futuro, mais alinhado com respeito a vida, algo realmente novo, não sombras do passado.